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  • Foto do escritorThiago Oliveira

O Horror de Junji Ito

Atualizado: 7 de mar. de 2023





Obs: esse texto não vai abordar Tomie, pois não havia lido a obra na época que escrevi, terminei recentemente, aqui está o link para as minhas opiniões sobre a obra. https://kouga845.wixsite.com/website/post/a-beleza-de-tomie


Horror é um gênero que eu consumo há mais ou menos uns nove anos, começou principalmente com jogos de Playstation 2 e depois foi para filmes, livros, series e creepypastas, que eram muito populares no começo dos anos 2010, mas hoje no geral virou bollshit e saturação, porém não nego que vira e mexe, eu consumo uma. O interessante é o que sempre a acompanha o terror nessas obras, a curiosidade, afinal, se uma obra incomoda (visualmente falando), choca ou assusta porquê consumi-la? No meu caso, é a curiosidade, a sensação de querer conhecer o que realmente acontece na aquele lugar, seja esse lugar uma mansão clássica ou uma cidade que está sendo influenciada por um ser que não pertence a essa realidade e que não podemos se quer compreende-lo.

Existe um tipo de media que eu particularmente evitava, por não conhecer nenhuma obra que me chamasse atenção ou quando consumia sempre era uma coisa decepcionante, os mangás e animes, isso até 2021, quando conheci o mangaká Junji Ito, que mudou muito o meu conceito de mangás de terror, me levando a conhecer outros autores geniais, que trabalham de maneira majestosa o horror. No texto de hoje, vou comentar sobre algumas obras do Ito que me chamaram a atenção, e quem sabe incentive alguém a conhecer esse autor que está cada dia mais popular na mídia.


Considerações:

1. O link que eu usei para leitura vai estar embaixo dos títulos, todos em inglês, porém, caso alguém queira, eu posso disponibilizar um link em português, basta me contatar.

2. O texto pode tocar em alguns temas sensíveis e algumas imagens podem incomodar, mas juro que não vai ser nada demais.


Long Dream - Because you didn't need to sleep tonight


Imagine essa cena que vou narrar:

Uma pessoa vai ao médico dizendo que tem problemas de sono, essa pessoa diz que sonha sempre que dorme e esses sonhos parecem durar dias, como se o tempo durante o sonho se prolonga-se e 5 minutos dormindo durasse três dias de sono para o indivíduo e esses sonhos na verdade são pesadelos. A situação é estranha, mas não completamente absurda ao ponto de não se cogitar isso por um estante, tempo é relativo, e um momento ruim pode parecer durar bem mais do que de fato durou, especialmente no âmbito misterioso dos sonhos, mas não há nem muito tempo para pensar nessa ideia, já que daí ela escala para uma coisa muito maior, em questão de dias os pesadelos de uma noite podem durar meses, anos ou o tempo de uma vida inteira, da ideia inicial, estranha, mas não totalmente absurda, a gente vai diretamente para isso:


qualquer parada para dormir e entrar em uma nova vida, em um pesadelo interminável, se perdendo totalmente a noção de tempo e de identidade. A história parte de uma exageração de uma coisa que a gente entende em um nível menor e justamente por isso nós colocamos no lugar de perguntar como seria sonhar o tempo de dias em uma noite só, é nesse lugar sutil entre a descrença e a curiosidade que rapidamente dá para se engajar em um conto de Junji Ito, ele tem vários contos mais ou menos desse tamanho e para mim o sentimento é muito parecido, um estranhamento inicial, um encontro com uma situação que aparentemente poderia ser real, que rapidamente escala em um pesadelo de proporções enormes, esse estranhamento é tipo uma dúvida de já vi isso antes, mas não sei á onde, junto com o desconforto de saber que aquilo vai de alguma forma acabar mal.


Em outro conto: My Dear Ancestors

Uma menina perdeu a memória, possivelmente por conta de um choque, e o namorado tenta ajuda ela a recuperar contando para ela coisas que eles viveram juntos, em uma visita a casa do namorado, acontece um momento bizarro em que o pai do rapaz aparece se arrastando para falar com ela e a presença de é claramente um foco de ansiedade, descobrimos que ele vai morrer logo, e que a personagem Risa, tinha prometido casar com o filho dele.


Ito, desenha os personagens quase sempre da mesma forma, ele tem esses traços simples, mas bonitos, com pouca textura e contraste no rosto, esse design simples faz muito sentido conforme o enredo progride. A Risa é uma personagem normal no estilo, mas quando a gente conhece ela tem essa textura preta em volta dos olhos muito mais larga que uma olheira, que salta completamente do estilo dos outros e exprime a ideia de que ela viu algo, os olhos transmite essa sensação de peso que parece que vaza quando ela dorme.



(repare os olhos da personagem nesses quadros)


quando ela visita a casa do pai do namorado e vira para olhar ele, aquele preto dos olhos vaza para o ambiente e fica claro que o terror que ele representa emana do que a Risa está vendo, o rosto liso e simples, da lugar para esse rasurado e cheio de emergência, olhando para cena do pai se rastejando por de trás da porta



Descobrimos, mais para o meio do conto que o pai do Shuichi, tem a cabeça de todos os ancestrais ligada encima da dele, ela se prolonga em formato de centopeia e cada uma tem os próprios pensamentos e memórias.


ele tá morrendo, então logo é o filho que vai tomar aquele lugar, esse momento é realmente incômodo por muitos motivos, expliquei como a presença do pai era uma fonte de ansiedade para Risa, a relação com sogro representando uma relação de peso que aparece no olhar, quando a fonte desse peso aparece, ela é literalmente uma coisa enorme presa na cabeça do pai, ela vai passar para o Shuichi e representa uma herança inevitável, o peso da presença da família, fica literalmente entre eles dois.


A ancestralidade aqui é representa como uma maldição e a vontade dos pais e avós pesa e fala dentro da cabeça do Shuichi. Acho que a parte mais bizarra disso tudo é como o Ito pega um sentimento específico, nesse caso o peso da vontade das famílias que oprime a relação entre os dois e eleva isso a uma representação sensorial, não só vemos aquilo, mas sentimos como aquilo pesa, aquilo dificulta o movimento, então ele se move de forma bizarra, que nem uma aranha.


o autor aqui transforma uma coisa abstrata e que a gente entende e se identifica em algum nível e escala isso em um pesadelo grotesco em que o sentimento de estranhamento e desconforto vira um horror corporal repulsivo, as faces lisas de antes, dão lugar há essas formas cheias de texturas e detalhes.



Glyceride. It's a little gross.


Uma menina é filha do dono de um restaurante, vivendo encima do restaurante e a gordura da cozinha sobe pelas paredes, ficando impregnada nos cômodos, paredes, móveis e até na pele dos moradores, e o Ito desenha a casa assim:


Tudo que eles tocam solta essa gordura, o ar é tenso e as peles são sempre oleosas com aspectos gordurosos, talvez, se ele não se firma-se tanto nos conceitos, tudo tão absurdo, seria simplesmente uma ideia boba, mas justamente por ser exagerada e deixar a situação representada tão gráfica


que fica impossível ser indiferente com aquilo, claro que a gordura naquele contexto tem um significado e tudo que ele quer representar com aquilo é transmitido tão fácil e de forma tão espontânea na história pela sensação, pelo toque e pela textura, entendemos o ambiente sufocante no qual eles estão inserido. Como já vimos aqui, muitas ideias do Ito, giram em torno de ideias e exagerações completamente bizarras ou mesmo uma ideia simples, mas que escala para uma coisa bizarra e imprevisível.


Muitas vezes os personagens não parecem muito reais diante daquelas situações, tipo é como se uma coisa bizarra fosse introduzida na história, uma coisa que seria impossível ser indiferente, mas os personagens são meio apáticos diante da situação, no sentido de que eles não parecem seres humanos reais reagindo há aquilo, por exemplo: a menina da casa de óleo, lidando com aquilo tudo, como se fosse só uma coisa estranha de família, isso de verdade incomoda um pouco, mas a gente sabe que os personagens precisam ser assim para o enredo funcionar.


Gyo


Em Gyo, o mangá gira em torno de um casal que não se entende, os dois tem problemas claros e não conseguem discutir ou trazer de forma racional, chegando ao ponto de ser irritante, eles nunca agem de forma lógica ou como gostaríamos que agissem. Os poucos casos em que tentam furar a bolha de irracionalidade e por exemplo falar com algum tipo de autoridade para pedir ajuda, ninguém os leva a sério ou entende o que eles querem dizer, essa falha na comunicação não é só presente em Gyo, mas em quase todas as obras do autor, é como se os personagens estivessem sufocados nas próprias neuroses e problemas, não podendo entrar em contato com algo fora dessa bolha. O casal disfuncional de Gyo, é reflexo de um medo que o autor está sempre explorando, essa sensação de solidão e a dificuldade absurda de ser entendido em um mar de loucura, além disso, esse casal também cumprem outra função, Gyo é um mangá bastante inserido na história do Japão, então vale um pouco de contexto.


Existe uma ferida na memória coletiva japonesa, o imperialismo japonês durante a guerra do pacífico foi responsável por: experimentos em humanos, massacres e estupros em massa, assim como a Alemanha nazista, o país tem um histórico de atrocidades de guerra que afeta até hoje a relação com os países vizinhos, com a diferença de que a Alemanha baniu o nazismo e integrou os crimes de guerra nos livros de história, no Japão ao contrário, o negacionismo e o revisionismo histórico dos massacres não é crime, havendo partidos e facções políticas que se apoiam nessa narrativa de que eles nunca aconteceram, isso se estende desdá década de 50 quando os livros de história começaram a ser rejeitados pelo ministro da educação pelos detalhes da atuação do país na guerra, até atualmente em que o antigo primeiro-ministro Abe Shinzo (período de 2012 à 2020), fez declarações apoiando alterações nos livros de história para que incluam declarações mais vagas em relação a responsabilidade do Japão, além disso, ele também prestou homenagem para o templo de Yasukuni, um símbolo forte do nacionalismo japonês, onde estão homenageados mais de mil criminosos de guerra condenados.


"Santuário" Yasukuni (com varias aspas)

essa situação toda alimenta a ferida aberta na memória coletiva japonesa, a mancha na percepção da identidade nacional, que em parte nega, oculta ou subverte eventos traumáticos da história recente do país. O que o ito cria em Gyo, é a percepção do vazamento dessa sombra coletiva, um horror que começa a partir do retorno dessas memórias.


A primeira página do mangá mostra o Tadashi praticando mergulho na praia de Okinawa, onde a praia foi palco de uma das maiores batalhas da 2°guerra, ele se depara com navios de guerra japoneses afundados, memórias de guerra afundadas no mar da cidade



é quando ele volta desse mergulho que o terror começa, o casal que mencionei no inicio, se deparam com esses peixes com patas que os seguiram até a casa alugada


e esses peixes exalam um cheiro insuportável, um cheiro de podre que é escrito e representado sempre com muitos detalhes, a personagem feminina, a kaori é muito mais afetada pelo cheiro do que o Tadashi, ela não suporta sentir isso, por esse motivo eles decidem voltar para Tóquio, mas ate mesmo lá, ela sente aquilo e a partir disso as micro violência entre os dois escalam cada vez mais, entre o namorado que não sente cheiro e diz que é só coisa da cabeça dela, que ela tá surtando, e a namorada que é muito mais sensível e está sendo perseguida por esse pesadelo desde Okinawa.


O subtexto de trauma coletivo da guerra imergindo do fundo da consciência é bem evidente e em que uma primeira camada deixava os personagens pouco reais com posturas que não parecem com há de seres humanos diante de coisas absurdas e com diálogos as vezes bobos, em uma segunda camada são exatamente o que torna aqueles personagens profundos, a apatia surreal do Tadashi diante daquele monte de bizarrices é retrato de uma postura japonesa que aa vezes simplesmente não sente o horror do que tá enterrado ali, quando ele está em Okinawa, mergulhando, o navio de guerra ali é só um ponto turístico e nada mais do que isso, é essa apatia dele que torna o personagem mais real, ele é incapaz de sentir ou entender quando aquele cheiro literalmente toma forma física, como se espera do Ito, no meio desse mangá para o fim, esse conflito toma proporções imensas e completamente absurda, um trabalho de horror corporal que eu nunca vi de forma tão incomoda antes. Gyo é com certeza um dos trabalhos mais maduros e mais difíceis de ler do Ito, e eu só trouxe a proposta base da obra, ela caminha para muitos lugares ainda.


Algo semelhante acontece em Uzumaki


esse mangá é um conjunto de tudo que faz a obra do ito, ser tão forte e tão abrangente.


A história acontece na cidade de Kurouzu-cho, amaldiçoada pelo conceito de espiral

a partir da disso se desenrola doze contos em que os dois personagens, em especial a menina, são afetados direto e indiretamente pelos eventos que acontecem com as pessoas daquela cidade. A sensação é como se a loucura estivesse vazando pela cidade, se o Ito tem a característica de colocar personagens simples e comuns com postura apática num ambiente opressivo e pesado, aqui é a expressão máxima disso, a cidade de kuroso é basicamente um personagem, se expande, se retrai e se redefine constantemente. Ao longo do desses 12 contos o conceito de espiral é explorado de todos formas possíveis, começando com ideias mais simples, como o pai do Shuichi, desenvolvendo uma obsessão por espiral.


(eu tenho um particular fascínio por esse quadro, ele representa muito bem o que é a obra de Junji Ito. Esse quadro é estanho e um pouco desconfortável, mas não é uma coisa irreal, no nosso dia à dia é possível encontrar pessoas que colecionam coisas entranhas em grandes quantidades, então consigamos assimilar a situação inicial das obras do autor porquê geralmente é uma situação palpável, um problema que geralmente conseguimos imaginar no nosso mundo).

enquanto a mãe desenvolve uma fobia imensa de espiral, chegando a corta fora as digitais da mão e isso vai até um conceito mais abstrato em que a espiral se manifesta no comportamento das pessoas, por exemplo: com o se a tendência de olhar para o centro de uma espiral, começasse a ter efeito sobre a necessidade da pessoa em ser notada


esses vazamentos de loucuras de Uzumaki nunca exatamente são manifestações de um tipo de mal, como a gente tá mais acostumado de uma perspectiva ocidental, mas algo que tem uma vontade própria, que foge a compreensão das personagens que estão esmagadas e perdidas naquele lugar, os contos de Uzumaki chegam a lugares tanto na forma de conta uma história, quanto politicamente no argumento, que eu nunca vi em uma história de terror, é um tipo de medo intrinsicamente japonesa, mas que tem um apelo e um alcance universal.

Uzumaki foi a primeira obra que conheci do Ito, lembro de pensar: "o que um mangá com o sobrenome do Naruto, pode me apresentar? minha reação foi mais ou menos assim:


Genuinamente recomendo ler Uzumaki, é um das minhas obras favoritas não só do autor, mas de tudo que já li, e é um quadrinho que vicia, na primeira vez que sentei para ler, eu consumi 139 paginas de uma só vez.


Existe adaptações em anime, mas eu fortemente recomendo manter distancia e só o ler mangá, porém o anime de Uzumaki esta marcado para estrear em outubro de 2022, e estou bem ansioso por ele, ainda mais depois que saiu o trailer


Edit: recentemente foi anunciado que o anime foi adiado por tempo indeterminado



Espero que animação seja assim o anime inteiro porquê combina muito bem com a obra.


Por fim, gostaria de dizer que o próximo texto iria ser sobre Silent Hill 2, mas achei melhor diferenciar e falar sobre coisas bonitas, então o próximo vai ser sobre as animações do Studio Ghibli.


Agradeço muito por quem gastou um tempinho lendo, muito obrigado mesmo.


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